Jornal Público, 11 de Dezembro de
2012
E
DIZER NÃO, NÃO, NÃO!
Ana Luísa Amaral
`Não’
é a palavra mais selvagem que se pode confiar à língua.
Emily
Dickinson
Tigre,
tigre, ardendo aceso / Pelas florestas da noite.
William
Blake
Era
preciso uma nova retórica, ou repetições, só assim talvez se conseguisse
apaziguar um pouco a indignação. Dizer “não!” muitas vezes, encher páginas com
esta palavra que uma poetisa disse uma vez ser a mais selvagem que se pode
confiar à língua, encher as páginas de tal maneira que a palavra transbordasse
para o ar, se propagasse como onda de rádio, ou gritar “chega!”, ou “fora!”, ir
buscar velhas palavras de ordem e fazê-las de novo, com pulmões de um bronze
que retinisse muito alto, transformar as palavras em sons abertos, e com as
palavras que temos na mão invadir ruas. Porque elas estão aqui, essas palavras,
fazem parte do nosso dicionário e da nossa memória, do nosso dizer de todos os
dias, uns aos outros, todos os dias as dizemos, só que noutros lugares de
sentido. Neste sentido, o de agora, o de hoje deste ano a findar tão triste,
tão cabisbaixo e sem sentido, fazer outra vez das palavras armas de arremesso
que não se limitem a pairar, suaves, mas perfurem as florestas da noite, como
disse um outro poeta, em furor e indignação pelas indignidades do seu tempo.
De
que outra forma responder à violência de, ao abrir um jornal e, em cima de
tanta injúria já consumada, ler da torpeza de negócios, como o da Tecnoforma, a
que não só se liga o nome do primeiro-ministro mas que foram ainda geridos por
um ministro que se serviu de redes de favores para montar para si próprio um
curso e um perfil de estudos que verdadeiramente não fez (não fez!), um
ministro que nem se demitiu nem foi demitido, mesmo depois de sobre ele ter
pesado tanta polémica? De que outra forma responder àqueles que nem sequer
consideram negociar uma dívida que não foi (não foi!) criada pelo povo que eles
em teoria representam? Porque só em teoria é essa representação – já que esta
gente fala como se estivesse do lado de uma margem iluminada, e tudo é dito e
desdito (como a afirmação ridícula do primeiro-ministro, depois desmentida pelo
ministro da Educação, sobre as propinas do ensino secundário) impunemente.
Este
governo não representa o povo, só aqueles que com ele vive na margem iluminada.
Por isso se arroga este governo de falar a partir dessa margem arrogantemente,
distanciadamente, sem uma palavra de solidariedade, sem lamentos nem desculpas.
Nós, os da margem de cá, desesperamos, assistimos a notícias que agudizam o
costume da desvergonha e da impunidade, ou olhamos o especial fenómeno de
banqueiros, antes confinados aos seus gabinetes e neles resguardados dos
olhares públicos, virem agora a público semana sim, semana não, a dizer dos
seus dotes politólogos, em clara demonstração da relação incestuosa entre
interesses económicos e interesses políticos.
Entre
os que vivem nesta margem, estão ainda assim os mais privilegiados, como eu,
que tal me considero quando penso nos desempregados em desespero para
conseguirem pagar casa e comida, antes ditas solidariamente pão e habitação, ou
nos sem-abrigo a amontoarem-se pelas ruas, ou nos jovens sem emprego, ou nos
reformados, ou nos idosos de pensões esqueléticas e voz ausente. Mas entre
maior e menor privilégio na desgraça, todos somos chamados de alunos
obedientes, criticados como piegas, e, se saímos às ruas, desvalorizados em
número e em voz pelos do lado de lá, os iluminados pelas sacrossantas
conveniências da banca, os que destituem o Estado das suas funções e obrigações
de Estado e que, paulatinamente, nos vão destituindo a nós, cidadãos, dos nosso
direitos de cidadania. Neste sistema em que apesar de tudo se pode falar e a
que damos o nome de democracia, são pardos os rostos que nos destituem. Assim,
tem-nos mostrado a História, se vão instalando as ditaduras.
Eram
precisas uniões, ainda que estratégicas, para exigir a mudança. Dizer “não!”,
repeti-lo muitas vezes, insistir a indignação, tornar o “não” em som cada vez
mais aberto, alongar-lhe o sentido, denunciar estas vergonhas e estas
brutalidades. E reclamar a paz. Não a paz do repouso, mas a paz da justiça
social e da cessação da guerra que é a violência sobre todo um povo. Lembrar
que o “não”, esta pequena palavra, usada todos os dias, pode habitar um lugar
novo de sentido. E que sendo, no dizer poético e em metáfora, a mais selvagem,
pode também ser, na vida, a única suficientemente poderosa para combater a
selvajaria. E contra ela arder, acesa.
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